quarta-feira, dezembro 03, 2008

Sentido final



Meu dia foi agraciado pela frase: “tem gente que abusa do direito de ser animal”. Frase de uma escritora gaúcha, Lara de Lemos, em um de seus contos pouco (re)conhecidos dentro e fora do RS. Engraçado como às vezes uma frase que se ouve parece definir todo o dia que se seguirá. Hoje é dia de final de campeonato de futebol. Eu moro a alguns poucos passos dos dois grandes estádios de Porto Alegre. Hoje é dia de final de campeonato de futebol, dia em que as pessoas abusam do direito de ser animais. Passo o dia fora de casa. Bem longe, fugindo de todo e qualquer movimento pré-jogo. Estudo. Leio. Tomo café. Ouço frases que me tocam e que explicarão meu dia. Volto para casa às 21h e o tal evento futebolístico é às 22h: bah, havia esquecido! Três horas para percorrer um caminho que normalmente leva cinco minutos. A cada sinal fechado que passo ao lado de um ônibus escuto: insultos, gritos, assobios, batidas nos vidros, buzinas, cornetadas e, é claro, mais insultos. Um maluco bate com a bandeira no meu carro e, delicadamente, olha para mim: “atirei o pau no grêmio e mandei...”. Eu resolvo: melhor fechar as janelas e focar-me no trânsito infernal. Terminada a maratona, chego em casa. Tomo um bom banho, relaxo, leio algumas coisas, ouço músicas e, depois de longas horas, adormeço. O problema é morar tão perto dos palcos futebolísticos: por volta da meia-noite, gritos enlouquecidos e enlouquecedores fazem meu prédio tremer e meu sono saltar do corpo e se perder. Percebo: o Inter ganhou. Um vizinho grita na janela, trezentas mil pessoas gritam nas ruas e há uma música constante: “atirei o pau no grêmio e mandei...”. Giro na cama que já parece estar fervendo, sufoco minha cabeça com o travesseiro tentando abafar o som que invade minha vida sem pedir licença, mexo as pernas freneticamente: é raiva! Sento-me na cama: mãos na cabeça e olhos vermelhos. Amanhã minha vida continua e será sonolenta. Toca o interfone, ou melhor, os interfones de todo o prédio em uníssono e escuto – mesmo sem atendê-lo – a voz que berra. Em meio ao caos, penso pouco – tudo está zonzo – batendo com a cabeça nas mãos, me vem um sorriso ao rosto: “tem gente que abusa do direito de ser animal”.